A seiva que pulsa no coração de uma máquina

Rubens Takamine

Abaixo você encontra um audio acessivel desse texto



Resumo

A partir de um olhar sensível para a obra do artista brasileiro Jonas Esteves, o texto discorre sobre a relação simbiótica entre sistemas maquínicos, sistemas vegetais e seres humanos, em processos criativos mediados pela tecnologia. Nesse aspecto, autores como Donna Haraway e Emanuele Coccia trazem reflexões que nos convidam a observar mais atentamente às formas de vida mais-que-humanas, a fim de nutrir um pensamento crítico acerca da “arte tecnológica” em contextos cada vez mais deflagrados pelas mudanças climáticas e pelas crises socioambientais.

Palavras-chave: arte; tecnologia; máquina; simbiose; ecologia

From a sensitive gaze on the works of Brazilian artist Jonas Esteves, the text discusses the symbiotic relationship between machine systems, plant systems and human beings, in creative processes mediated by technology. In this occasion, authors such as Donna Haraway and Emanuele Coccia bring us thought-provoking reflections to direct more attention to “more-than-human” life forms in order to nurture a critical thinking about “technological art” in contexts increasingly triggered by climate change and environmental crises.

Keywords: art; technology; machine; symbiosis; ecology

Desde una perspectiva sensible de la obra del artista brasileño Jonas Esteves, el texto analiza la relación simbiótica entre sistemas maquinicos, sistemas vegetales y seres humanos, en procesos creativos mediados por la tecnología. En esta ocasión, autores como Donna Haraway y Emanuele Coccia nos traen reflexiones que invitan a prestar más atención a las formas de vida “más que humanas”, con el objetivo de nutrir el pensamiento crítico sobre el “arte tecnológico” en contextos cada vez más desencadenados por el cambio climático y las crisis socioambientales.

Palabras-clave: arte; tecnología; máquina; simbiosis; ecología

A seiva que pulsa no coração de uma máquina

A relação entre organismo e máquina tem sido uma guerra de fronteiras. As coisas que estão em jogo nessa guerra de fronteiras são os territórios da produção, da reprodução e da imaginação. Este ensaio é um argumento em favor do prazer da confusão de fronteiras, bem como em favor da responsabilidade em sua construção. (Haraway, 2009, p.37)

Em 1985, a bióloga e filósofa Donna Haraway lança o Manifesto Ciborgue, obra emblemática que inaugura uma série de debates contemporâneos acerca da ciência, atravessada pela tecnologia e pelas teorias feministas-socialistas. No manifesto, a figura da ciborgue aparece como um mito “onde a fronteira entre o humano e o animal é transgredida” (Haraway, 2009, p.41). Essa transgressão revela-nos o modo como o desenvolvimento tecnológico está constantemente presente em nossos imaginários, seja através das relações de trabalho com o uso da informática, robótica e inteligência artificial, promovendo a automatização dos processos laborais, ou mesmo na produção de conhecimento em múltiplas dimensões éticas e estéticas do cotidiano. Implantes, transplantes, enxertos, próteses, vacinas, psicofármacos, substâncias que aguçam a percepção, memória e tesão humanos – são apenas alguns exemplos que reforçam o argumento da autora.

Diante do panorama especulativo, a tecnologia, segundo Haraway, seria capaz de desmontar os pressupostos científicos que, por séculos, embasaram a legitimidade biologizante da dominação de determinados grupos hegemônicos sobre “minorias” compostas por pessoas racializadas (não-brancas), mulheres (cis e trans), operários, camponeses, e etc. Numa suposta busca por equidade, as novas tecnologias estariam à serviço de pessoas menos favorecidas tal qual um instrumento de “hackeamento” e transformação política. Com o avanço da medicina e da teleinformática, o corpo humano se redesenharia adquirindo "extensões", componentes ou qualidades, que, em teoria, tornam suscetíveis a desestabilização das hierarquias e dos dualismos os quais operam o "eu" ocidental. Nesse ponto, não haveria mais fronteiras rígidas entre o natural e o artificial, o humano e o maquínico, visto que estamos submersos em culturas cada vez mais pós-biológicas, digitais, que moldam radicalmente nossos modos de sentir, afetar e relacionar-se com a outridade. Dentro de uma perspectiva pós-biológica, a organização das sociedades industriais orgânicas torna-se um sistema de informação polimorfo (Santaella, 2003, p.186).

Todavia, o mito criado por Haraway jamais esteve livre de críticas e controvérsias ao longo das décadas posteriores ao seu lançamento. A utopia foi recrudescendo à medida em que a representação da ciborgue foi sendo cooptada pelas narrativas distópicas daqueles que a filósofa justamente repreendia: os poderosos do Vale do Silício. A ciborgue utópica que antes propunha a confusão das fronteiras ontológicas homem/mulher e humano/máquina, a fim de superar as desigualdades estruturais da sociedade patriarcal excludente, passa a ser encarada com desconfiança frente ao crescente processo de algoritmização das relações interpessoais, precarização das relações de trabalho, perda de privacidade e, sobretudo, monopólio das grandes empresas de tecnologia. Portanto, a imagem que temos hoje da ciborgue "super-humana", fruto do capitalismo tardio, não é a mesma vislumbrada por Haraway, outrora, sinônimo de empoderamento e equidade.

Lanço, aqui, duas perguntas: 1) As tecnologias estão à serviço de quem? 2) São produzidas por quem e para quê? Tratam-se de indagações situadas que podemos sempre nos fazer para atualizar o debate. No contexto da arte contemporânea, atravessada pela ciência e pela tecnologia, não seria diferente a urgência em restabelecer tais questionamentos.

A partir da valiosa menção à Donna Haraway (1985), dou início à escrita deste texto que girará em torno da poética do artista Jonas Esteves, com apresentação das obras O que nos move (2020), #erromáquina (2012/2020) e Máquina Sensível (2022). Apesar das proposições emergirem de contextos singulares, a temática pulsante em cada um dos trabalhos ressona críticas profundas aos dispositivos de controle e cooptação de subjetividades, próprios das sociedades neoliberais, tendo em vista um cenário político global estremecido pelas mudanças climáticas e pelos cataclismas ambientais de origem antrópica.

O que nos move é um mistério

Brotos de feijão germinam no interior de sete vasos translúcidos acoplados à circuitos eletrônicos. Na instalação viva O que nos move, apresentada pela primeira vez na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, em 2020*, o artista Jonas Esteves revela ao espectador o modo como cada muda de feijão cresce sob influência de frequências luminosas e sonoras que incidem sobre os pequenos vasos. A cada 5 segundos, aproximadamente, frequências distintas de luz e de som são acionadas em cada receptáculo. Tratam-se de vibrações atreladas aos sete principais chakras do corpo humano.

Figura 1: Jonas Esteves, O que nos move, 2020, exposição Estopim e Segredo, EAV Parque Lage. Fonte: cortesia do artista

Ao atravessar conceitualmente preceitos da filosofia oriental, Jonas desafia axiomas que, por séculos, renegaram a eficácia de práticas espirituais e terapêuticas, consideradas pseudociência no Ocidente moderno. Através da investigação, o artista cria rearranjos para especularmos simbioses possíveis no mundo natural, colocando em evidência o inesperado vínculo entre um sistema maquínico e um sistema vegetal.

Em tradições orientais, como no hinduísmo e no budismo, os chakras são compreendidos como pontos de energia conectados à base da coluna dorsal até o topo da cabeça, e servem para absorver ou liberar energia vital (prana), distribuindo-a pelo corpo com o intuito de restabelecer seu fluxo energético circular e contínuo. Nessas cosmologias, quando uma pessoa não se sente bem fisicamente ou possui pensamentos ruins, apatia, animosidade, ansiedade, acredita-se que ela esteja com algum chakra fechado, impedindo a plena circulação bioenergética.
Nesse ímpeto, diversas técnicas e saberes são acessados para promover o funcionamento regular dos pontos de energia a fim de promover o bem estar físico, intelectual, emocional e espiritual da pessoa, tais como as práticas do yoga, do reiki, a meditação, a recitação de mantras, além de mudanças na alimentação. Outro caminho para equilibrar os chakras é por meio da exposição à determinadas frequências sonoras e luminosas, já que cada um dos sete principais chakras (raiz, sacral, plexo solar, coração, garganta, terceiro olho e coroa) podem ser estimulados através de vibrações sonoras e frequências luminosas correspondentes às reflexões visíveis do arco-íris: vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, índigo e violeta, respectivamente. Essa sistematização milenar é encontrada em diversos livros, tendo como registro mais antigo, as escrituras sagradas do hinduísmo, Vedas, que surgiram no século 2 a.C. (Schneider; Cooper, 2019).

O intuito do artista Jonas Esteves, por sua vez, não é comprovar cientificamente a eficácia da cromoterapia, do sound healing ou qualquer outra prática terapêutica, seja em corporeidades humanas, tampouco, vegetais. Seu ensejo é criar horizontes abertos para que possamos fabular o inimaginável. O que aconteceria a uma planta se ela recebesse reiki? Plantas também possuem chakras? Humanos podem se curar através do estímulo à sons e cores? É no limite de fronteiras entre os conhecimentos acerca do funcionamento dos sistemas humano, vegetal e maquínico, que Jonas repousa sua investigação poética.

É inegável que as luzes coloridas auxiliaram as mudas de feijão no processo de crescimento ao longo da exposição. A instalação se encontrava em uma área pouco iluminada pela luz natural do sol, portanto, a incidência das luzes provenientes do circuito eletrônico era fundamental para a sobrevivência dos brotos de feijão. O instigante foi constatar que, sob as mesmas condições de substrato, terra e irrigação, cada planta cresceu com características singulares. O único fator de variação foi, justamente, a incidência de frequências luminosas e sonoras correspondentes ao alinhamento de cada chakra humano. Das setes mudas, pôde-se observar que algumas cresceram mais rapidamente que outras; duas extravasaram o continente do vaso e se emaranharam, enquanto as demais, tímidas, restringiram-se a ocupar o espaço onde foram semeadas.

Figura 2: Jonas Esteves, O que nos move, 2020 (detalhes de obra). Fonte: cortesia do artista

O título do trabalho O que nos move consegue ser, ao mesmo tempo, afirmação e pergunta. Em tempos de letargia pós-pandêmica e de cataclismas ambientais, o que é capaz de nos mover?

Os japoneses possuem um termo muito bonito ikigai, que designa o motivo que leva alguém a se levantar da cama todos os dias. Um propósito de vida. Aquilo que é responsável por estimular a seguir em frente. Manter-se vivo. Mas, para além do cuidado com a família, com as demandas do trabalho, os deveres da escola, o lazer ao lado de amigos e pessoas queridas, o que leva alguém a acordar todos os dias? De onde nasce a força espiritual que nos coloca de pé? Tratam-se de questionamentos profundos, de ordem sutil, particular e de difícil apreensão - ao menos para nós, humanos. No caso das plantas, ousaria dizer que seu ikigai é simplesmente a luz do sol.
As plantas quando começam a se ramificar e crescer, percorrem trajetos em direção a qualquer ponto iluminado. A luz é fundamental para a nutrição das plantas que fazem a fotossíntese – processo responsável pela metabolização do açúcar vegetal. A autotrofia é o termo concebido a essa peculiar capacidade de transformar em alimento tudo o que se toca e tudo o que se é. Nas palavras do filósofo Emanuele Coccia, trata-se da "capacidade que elas têm de transformar a energia solar dispersa pelo cosmos em corpo vivo, a matéria disforme e disparatada do mundo em realidade coerente, ordenada e unitária" (Coccia, 2018, p.15).
As mudas de feijão no trabalho de Jonas Esteves encarnam a relação mais íntima e ancestral que rege a constituição da biosfera. A água se mistura com a terra carregando os nutrientes. A semente germina e cresce. O que orienta a continuidade na vida de uma planta (e todos os demais seres viventes) é fisicamente a luz. Não à toa, em tantas cosmologias ancestrais o Sol se manifesta como divindade: elemento sagrado que se dissipa por todos os cantos, sem antropomorfismos, apenas em módulos, vibração, corrente e calor. Desse modo, invisível, a luz do sol garante a sobrevivência e pluralidade dos ciclos. No caso da instalação O que nos move, as luzes e sons incidentes sobre as plantas são artificiais, uma intervenção. Jonas Esteves então adiciona subjetividade extra à reflexão ao combinar a tecnologia dos circuitos eletrônicos à espontaneidade da tecnologia vegetal.

A ciência (ocidental) ainda não é capaz de explicar todos os fenômenos que orquestram o funcionamento do cosmos. Devemos nos lembrar que antes de uma teoria científica tornar-se legítima e comprovável, ela foi uma hipótese, um cisto inexplicável na investigação de um pesquisador. A poética de Jonas Esteves (e tantos outros artistas-cientistas) habitaria uma lacuna semelhante à da hipótese, que, antes de ser comprovada ou refutada, produzirá inquietude, expectativa, mistério. Seja por movimento de atração ou de repulsa, o mistério é um elemento que espiritualmente nos move.

A rebeldia das máquinas errantes

A palavra "tecnologia" tem origem na junção de duas palavras: do grego tekhne que significaria técnica, arte, ofício; e do sufixo logos que significaria estudo. Trata-se do conjunto de conhecimentos em torno da arte de modular o mundo em forma prática com o objetivo de satisfazer às necessidades e os desejos humanos. Portanto, as tecnologias das quais falamos estão situadas em um campo relacional, afinal a depender da cultura, tais necessidades variam.
A tecnologia e o progresso tecnológico não deveriam ser encarados em termos binários, unilaterais, como comumente vemos na ficção científica: de um lado, a tecnofilia utópica que emerge do entusiasmo desmedido pelos avanços técnicos; do lado oposto, a tecnofobia distópica e o receio de que as máquinas desencadearão o fim da humanidade. Entre a salvação e o apocalipse, a afinidade e a rejeição, cada técnica (ou tecnologia) é estabelecida em determinado espaço-tempo com finalidades específicas; criada e destinada à apreciação de determinado grupo de pessoas. Por vezes, até caem em desuso. De fato, uma tecnologia nem sempre será benéfica ou utilitária a todos os grupos, tampouco armadilha capaz de destruir irreversivelmente as relações humanas. Ambas as visões são ilusórias, construídas pelo desejo insaciável de universalizar categorias - e essa ter compreensão holística e relacional é uma importante chave de leitura para trabalhos de arte atravessados pela ciência e pela tecnologia.
Para o teórico da comunicação Arlindo Machado, um verdadeiro criador (artista) não se submete às determinações de um aparato técnico. Na contramão, um criador subverte continuamente a função da máquina, sistema ou programa, que utiliza: aprende a manejá-los no sentido contrário de sua produtividade programada (Machado, 2005). O autor menciona, como exemplo, o dilema clássico de Vilém Flusser na obra Filosofia da Caixa Preta. Para este, a fotografia é capturada sem que o fotógrafo compreenda o que acontece tecnicamente dentro da câmara (caixa preta), suscitando um processo mediado. O fotógrafo utiliza a tecnologia da câmara, mas não foi responsável por criá-la. Diferentemente de outras técnicas como a pintura, na qual o pintor utiliza as próprias mãos, embebidas de pigmento e pincel, para produzir suas imagens. Na fotografia o registro é feito através de um clique. Nesse sentido, a criação não estaria no ato fotográfico em si, mas sim, nos elementos exteriores ao medium: no olhar do fotógrafo, no enquadramento, no cenário, na construção da mise-en-scène, etc.

Jonas Esteves é um artista bastante ciente dessas problematizações em torno da arte tecnológica. Menciono, nesse ensejo, a obra intitulada #erromáquina. Entre 2012 e 2020, Esteves fotografou diferentes lugares onde a tecnologia luminosa de letreiros de ônibus, relógios eletrônicos, propagandas publicitárias, semáforos e outros informativos urbanos, dão sinais de desgaste: falhas, glitchs, modulações. Esses dispositivos que têm a função de guiar, vigiar ou orientar nossas rotas urbanas, estão suscetíveis a apresentar desvios. É comum pensarmos, todavia, no funcionamento das máquinas de forma produtivista, isenta de erros, opondo-se ao cérebro humano, cuja memória é vacilante.

Às vezes, com o passar do tempo e sem a devida manutenção, um relógio urbano pode não a informar a hora correta, e por alguns instantes transmitir uma mensagem não esperada, que poderia ser lida como “uma mensagem da cidade”. Nesse sentido, a cidade, junto com as tecnologias nela implantadas, oferece um grande laboratório investigativo. (Esteves, 2020)
Figura 3: Jonas Esteves, #erromáquina, 2012/2020. Fonte: cortesia do artista

Máquinas não são eternas. Seja pelo uso recorrente, pela falta de manutenção ou, mesmo, pela obsolescência programada da tecnologia, sofrem deteriorações com o tempo. A investigação de Esteves evidencia tais complexidades, mas deixa em aberto o discurso, já que pode ser lido tanto como denúncia do descaso público para com a manutenção dos dispositivos defeituosos, mas também, uma apropriação da linguagem fotográfica para evidenciar contrafluxos ao projeto industrial - projeto este que endossa os objetivos de produtividade, captura e hegemonia da sociedade tecnológica sobre nossos comportamentos (Machado, 2005). A função da arte, dentro da perspectiva de Machado, está expressamente vinculada à questionamentos éticos e políticos de seu tempo, noção que atravessará também as reflexões de autores como Jacques Rancière (2009) e André Lepecki (2011).
Em sistemas onde o progresso é outorgado a qualquer custo, desacelerar é uma forma de transgressão. A) Um corpo que dança ou dorme pela cidade atrapalhando seu fluxo linear; B) Um painel publicitário de outdoor que passa a apresentar falhas na emissão da mensagem. Por si só, manifestações como essas criam ruídos e fraturas nos objetivos do metassistema: a carne e a eletricidade se rebelam ante às normatividades impostas pela "polícia". Rancière (2009) descreve o termo, título de sua obra A partilha do sensível, como sendo uma espécie de formação política a partir do "dissenso" que, grosso modo, seria a multiplicidade e discordância entre as percepções individuais de uma comunidade. Se a política está atrelada às percepções, ela também se situa na esfera do sensível e, portanto, carrega consigo particularidades estéticas - assim como a arte. Nesse aspecto, um regime político só é democrático se incentivar a pluralidade e o tensionamento dos sentires.

Talvez até se possa dizer que um dos papéis mais importantes da arte numa sociedade tecnocrática seja justamente a recusa sistemática de submeter-se à lógica dos instrumentos de trabalho, ou de cumprir o projeto industrial das máquinas semióticas, reinventando, em contrapartida, as suas funções e finalidades. Longe de deixar-se escravizar por uma norma, por um modo estandardizado de comunicar, obras artísticas realmente fundantes na verdade reinventam a maneira de se apropriar de uma tecnologia. (MACHADO, 2005)

O sangue, a seiva, o silício

As engrenagens de um corpo sem órgãos. Um sistema orgânico inalienável. A partilha do sensível no dissenso das máquinas. Ao buscar inspiração em histórias de ficção científica e nos heróis japoneses Tokusatsu, Jonas Esteves propõe a construção de mundos habitáveis nos limites do agora. Esteves desenvolve sua poética com interesse nas mediações entre corpo, tecnologias da informação e a ampliação de concepções ocidentais acerca do binômio cultura e natureza, permeando a porosidade das fronteiras que colocam em lados opostos a humanidade e as máquinas. Seu escopo de trabalhos, práticas e experiências, situam a carne e o metal em postos de relacionalidade. Máquinas não são apenas extensões de corpos humanos, mas podemos pensá-las como casulos que resguardam em si um potencial latente da transformação (Coccia, 2020, p.91). Cada vez que as manuseamos tecnicamente, ocorrem atualizações e modificações em nosso espírito (intelecto) – uma afetação de dupla via.

Não está claro quem faz e quem é feito na relação entre o humano e a máquina. Não está claro o que é mente e o que é corpo em máquinas que funcionam de acordo com práticas de codificação. Na medida em que nos conhecemos tanto no discurso formal (por exemplo, na biologia) quanto na prática cotidiana (por exemplo, na economia doméstica do circuito integrado), descobrimo-nos como sendo ciborgues, híbridos, mosaicos, quimeras. (Haraway, 2009, p.91)

Ter essa percepção é importante para evitarmos o discurso tecnofóbico ante o cenário obscurecido, onde algoritmos possuem agência sobre nossas escolhas, gostos, sentimentos e interações. Fato é, que a relação a humano e máquina é transversal. À medida em que nossa subjetividade é capturada pelos dispositivos maquínicos, dilui-se a configuração de "quem faz e quem é feito", tal como Haraway afirma. No entanto, por detrás de cada algoritmo há um programador. E por detrás de um programador há uma companhia, empresa, start up, grupo de pesquisa ou coletivo com interesses distintos, sejam estes econômicos, políticos, culturais, artísticos. Portanto, é injusto culpabilizar unilateralmente as máquinas pela precarização da vida humana se entendermos que a rede que costura essa teia é complexa e relacional. Seria mais pertinente evidenciar quem (grupo que) está nas pontas dessas extensões maquínicas, produzindo determinada tecnologia, à benefício de quem e para quais fins.

Figura 4: Jonas Esteves, ativação da Máquina Sensível, 2022, EAV Parque Lage. Fonte: cortesia do artista

Em 2022, Jonas me convidou para participar da obra-experiência intitulada Máquina Sensível, que consistia na ativação de duas obras vestíveis: X-plorer e Parasite vírus. No contrafluxo da obsolescência programada e da desenfreada algoritmização das relações sociais, a experiência de Jonas previa o uso da tecnologia como forma de restabelecer conexões perdidas na cisão homem e natureza. Pelo paradigma cartesiano, o homem se vê apartado da paisagem circundante à qual faz parte e integra, concebendo uma hierarquia entre o ser pensante, racional, e a natureza tida como inerte, irracional. Máquina sensível busca subverter tal concepção, demonstrando, pela ordem das sutilezas, que nada na natureza é inerte, pelo contrário, nela há memória, inteligência, eficácia e tecnologia unívocas.

Brevemente, explico o funcionamento dos dispositivos vestíveis: 1) No braço, um dispositivo eletrônico constituído de arduino, raspberry e sensor de batimentos cardíacos, fixa-se ao corpo do usuário para realizar a leitura de seus dados biológicos. Esses dados são disponibilizados nas redes sociais do artista e à medida em que ocorrem interações entre o público e as informações coletadas pelo dispositivo (Parasite vírus), este garante sua própria sobrevivência dentro de um sistema de biofeedback.
2) Nas costas, outro dispositivo (X-plorer) contendo também arduino, raspberry e sensores, possui a capacidade de ler as condições climáticas do ambiente onde o usuário se situa, como: temperatura, calor, altitude, gases tóxicos e presença de outros seres viventes. O artista considera esse vestível uma "estação meteorológica nômade", uma mochila capaz de auxiliar um viajante por suas andanças e trilhas por territórios desconhecidos, prevendo, assim, adversidades como chuvas, enchentes, terremotos e outros fenômenos (im)previsíveis da natureza.

Esse aparato conduz experiências que se aproximam de investigações de "artistas-ciborgues" como a espanhola Moon Ribas, conhecida por implantar sensores sísmicos em seus pés (2013). A partir da percepção expandida das vibrações de terremotos ao redor do globo, a artista cria coreografias e movimentos autônomos de dança. Nos projetos de Esteves e Ribas, a coleta de dados do meio ambiente serve como substrato para uma criação artística que se efetua por meio de processos de mediação, na qual a natureza deixa de ser apenas objeto ou matéria-prima do artista para tornar-se sujeito constitutivo da ação poética. Nesse sentido, os artistas "fazem-com" a natureza: adequam-se ao tempo, à temperatura, altitude, magnitude sísmica, características fisiológicas do meio circundante, destituindo temporariamente a disciplina e o controle exercidos pela nossa mente sobre o corpo. A carne se torna veículo de passagem, um receptáculo capaz de transmitir vibrações, frequências e outras afetações, que pulsam da/na própria paisagem.

Nas apresentações da artista, o planeta é o verdadeiro coreógrafo. "Poderia ser melhor desenhar a nós próprios para nos adaptarmos melhor ao planeta em que vivemos. E não o contrário" reflete Moon Ribas. Em Waiting for earthquakes, título do trabalho de Ribas, uma dança pode durar cinco segundos ou três horas. Se não houver sismos, não há dança. Os dados sísmicos capturados ampliam o repertório de sentidos da performer, uma espécie de "sexto sentido", de modo a restabelecer a conexão íntima e intuitiva com as forças naturais.
A experiência de Esteves percorre movimento similar. No entanto, os vestíveis da Máquina Sensível não geram percepções de ordem física, como os tremores na dança de Ribas. No caso de Esteves, os dados ambientais coletados são armazenados nos próprios dispositivos vestíveis que adquirem visualidade. A partir das informações, algumas luzes coloridas acendem na mochila (X-plorer) e gráficos surgem na tela do dispositivo conectado ao pulso (Parasite vírus).

Ao me perguntar sobre a sensação de ativar a Máquina Sensível, contei à Jonas sobre minha relação com o butô, dança de origem japonesa criada por Hijikata Tatsumi, no final dos anos 1950. Nessa manifestação artística, o dançarino neutraliza suas energias, desconstruindo toda disciplina, moralidade e formatações socioculturais atribuídas pelo corpo social (shintai), além de antropomorfismos que guiam seu pensamento e ações cotidianas. O esvaziamento da mente e do espírito, por parte do dançarino, permite a consumação da metamorfose em seu corpo de carne (nikutai). A obra-experiência Máquina Sensível proporciona percepções expandidas a nível metamórfico, mas, claramente, foi um modo particular de me relacionar com os vestíveis. Cada performer irá acessar seu próprio repertório de vivências e memórias afetivas para tornar-se Máquina Sensível.
Nas palavras de Donna Haraway, "a política do ciborgue é a luta pela linguagem, é a luta contra a comunicação perfeita, contra o código único que traduz todo significado de forma perfeita" (Haraway, 2009, p.88). A obra-experiência orquestrada por Jonas adquire aspecto investigativo e fabular, tão caro à ficção científica, à medida em que o uso da tecnologia é utilizado para questionar o antropocentrismo enquanto código único na organização de mundo e seu conjunto de relações. A Máquina Sensível advoga pela imperfeição da forma, pela construção de pontes sensíveis mais-que-humanas, pela possibilidade de transformação de si a partir da outra-natureza. Se as naturezas estão em constante transmutação, não faz sentido as culturas e o próprio entendimento do que vem a ser humanidade, cristalizarem-se em conceitos tão estáticos e impenetráveis.

Notas para deslocar o fim

Podemos dizer que o funcionamento social é também um maquinário. Máquinas dão sinais de esgotamento quando se aproximam da obsolescência. Irracionalmente, máquinas podem ser mais sensíveis que alguns seres humanos. Intencionalmente, humanos podem ser mais irracionais, irresponsáveis e insensíveis que máquinas – prova disso é que, segundo a SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute), em 2017, foram utilizados 1,74 trilhão de dólares com gastos militares no mundo todo. Como é possível, em pleno século XXI, termos gestores que gastam mais com armamentos do que investimentos em prol da erradicação da pobreza?

As proposições de Jonas Esteves parecem trazer uma reconciliação eficaz à dicotomia intangível que opõem máquinas e humanos, natureza e cultura, tecnofobia e tecnofilia. Reconhecendo os privilégios que o cerceiam, o artista propõe a reconfiguração dessas fronteiras estabelecidas (Haraway, 2009, p.37), porém, repleto de responsabilidade e cuidado em seus rearranjos. A tecnologia, em suas diferentes manifestações poéticas e também éticas, está à serviço da tentativa solidária de cicatrizar feridas irreversíveis deixadas pelo ímpeto colonial, antropocêntrico, de se ocupar, habitar e usufruir os ecossistemas vivos.
Nesse âmbito, embebido pelo conhecimento científico – mas sem renegar os saberes milenares – o fazer artístico de Jonas não obedece à reta do aceleracionismo. Por sua vez, cria contrafluxos para que possamos vagarosamente despertar uma trama coletiva e simbiótica nos mundos emaranhados (Silva, 2016), ruínas (Tsing, 2019) e outros pluriversos imaginados onde a esperança faz morada. Não podemos nos esquecer do ensejo utópico e dos ideais emancipatórios contidos na ciborgue de Donna Haraway: uma utopia forte o suficiente para nos fazer levantar todos os dias da cama. Mas que essa utopia jamais nos conduza à anestesia acerca dos problemas reais a serem enfrentados no aqui e agora.

O sangue que percorre nossas artérias
carrega o açúcar que nutriu a seiva doce do aipim.
A revolução será (já está sendo) multiespécie.

*A realização desse texto foi possível com apoio da bolsa CAPES de doutoramento. Celebremos a educação pública.

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_________. Metamorfoses; desenhos de Luiz Zerbini; tradução Madeleine Deschamps e Victoria Mouawad, ed.1. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2020.
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ESTEVES, Jonas. Catálogo digital #erromáquina, contemplado pelo edital Cultura Presente, 2020. Disponível em: http://jonas.art.br/erromaquina_catalogo. Acesso em: 03/10/2023.
GAGLIANO, Monica. Thus Spoke the Plant: A Remarkable Journey of Groundbreaking Scientific Discoveries and Personal Encounters with Plants. Berkeley, California: North Atlantic Books, 2018.
HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano / organização e tradução Tomaz Tadeu – 2. ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
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LEPECKI, André. Coreopolítica e coreopolícia. Florianópolis, SC. Ilha Revista de Antropologia. Universidade Federal de Santa Catarina: v. 13, n. 1,2. 2011. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/21758034.2011v13n1-2p41/23932. Acesso em 03/10/2023.
MACHADO, Arlindo. Tecnologia e arte contemporânea: como politizar o debate, Revista de Estudios Sociales [Online], 22 | Dezembro, 2005, posto online no dia 01 dezembro 2005, consultado em 24 julho 2023. URL: http://journals.openedition.org/revestudsoc/22781 RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. 2a Ed, São Paulo; Editora 34, 2009.
SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
SCHNEIDER, Adalbert; COOPER, N.J. (2019). A Brief History of the Chakras in Human Body. 10.13140/RG.2.2.17372.00646.
SILVA, Denise Ferreira da. “Sobre diferença sem separabilidade”. In: Catálogo da 32ª Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2016. Disponível em: https://issuu.com/amilcarpacker/docs/denise_ferreira_da_silva_. Acesso em: 03/10/2023.
TSING, Anna. Viver nas Ruínas: paisagens Multiespécies no Antropoceno. Brasília: IEB, 2019.

Site do artista Jonas Esteves: http://jonas.art.br

A obra O que nos move foi exibida em duas ocasiões. Em 2020, na exposição Estopim e Segredo na EAV Parque Lage como projeto de conclusão no curso Formação Deformação do mesmo ano, e em 2022, na exposição Matéria Muta, sediada na Fábrica Bhering. Mais informações, ficha técnica completa e vídeos do trabalho, podem ser encontrados no website do artista: http://jonas.art.br/o_que_nos_move
A energia cósmica, cuja origem acredita-se vir do sol e conecta todo os elementos do universo. O princípio universal de energia ou força, responsável pela vida, calor e manutenção corporal, prana é a soma total de todas as forças manifestantes no universo.
Informações coletadas no site especializado Chakra Key Academy, criado por Rick Ireton, autor e professor, cujo trabalho integra a sabedoria oriental do sistema de chakras: https://chakrakeyacademy.com/chakrakey-frequencies/
Tokusatsu (特撮) é um termo japonês para séries e filmes de ação que fazem uso de efeitos visuais e pirotécnicos. Afinal, trata-se da abreviação de “tokushu kouka satsuei” (特殊効果撮影). Portanto, o significado de tokusatsu é “filmes de efeitos especiais”.
Arduino é uma plataforma de código aberto que permite aos usuários criar objetos eletrônicos interativos. https://www.arduino.cc
Raspberry Pi é um computador que roda Linux, mas também fornece um conjunto de pinos GPIO (entrada/saída de uso geral), permitindo controlar componentes eletrônicos para computação física e explorar a Internet of Things (IoT). https://www.raspberrypi.org
Mais informações sobre a experiência Waiting for earthquakes, de Moon Ribas: https://macleans.ca/society/moon-ribas-uses-a-seismic-sensor-to-feel-the-earth-move/
Entrevista de Moon Ribas para o jornal Publico.PT: https://www.publico.pt/2019/01/30/p3/perfil/moon-ribas-a-artista-cyborg-que-danca-quando-sente-sismos-e-quer-salvar-a-terra-1859424